Uma religião intolerante?

Luciana de Carvalho:



Muito se fala sobre ser o Islam uma religião “extremista”, “radical”, incapaz de conviver com as demais. Seja em noticiários, debates acalorados via internet ou mesmo em salas de aulas, a ideia de que o Islam propaga violência desde sua gênese, tendo inclusive se expandido pela ponta da espada é disseminada amplamente.
Trata-se, como em inúmeras outras questões que tentaremos desmistificar nesta seção sobre Direito e direitos no Islam, de patente inverdade.
O conceito de religião, por si só, já traduz a ideia de busca do bem, de trabalho espiritual para aperfeiçoar a si e ao entorno. Logo, uma religião que pregue o mal é inconcebível pela aplicação do mais simples raciocínio. Tratando-se de Islam, a aberração conceitual de tal correlação é ainda mais gritante, pois que a própria palavra Islam significa, literalmente, paz (Islam, do árabe salam = paz).

Da liberdade religiosa

Um muçulmano deve buscar viver em harmonia com todos a sua volta, sejam seus irmãos muçulmanos, sejam não-muçulmanos, fazendo para isso todo o esforço interno (jihad menor) que venha a ser necessário.
Para essa convivência pacífica, a tolerância é, decerto, fundamental, sendo assegurado no Alcorão não só o direito à liberdade religiosa (“Não há imposição quanto à religião, porque já se destacou a verdade do erro.” [2:56] “Dize-lhes: A verdade emana do vosso Senhor; assim, pois que creia quem desejar e descreia quem quiser” [18:29]), como também à igual proteção àqueles que se encontrem sob sua jurisdição.
Em consonância com este ensinamento, na época do Profeta Muhammad (S.A.A.S.), quando uma nova região era conquistada, era permitido aos seus habitantes a manutenção dos seus credos, prática incomum nas guerras em que outras nações saiam vencedoras (vide as Cruzadas e as missões colonizadoras). Além disso, era livre também a prática dos cultos e devoções distintos da religião oficial, algo que no Brasil, por exemplo, só veio ocorrer com o advento da Constituição Republicana de 1891 (a Carta de 1824 garantia a liberdade de crença, mas a prática religiosa distinta da oficial deveria ficar restrita aos domicílios, sendo punida qualquer manifestação exterior).
A esse respeito narra-se que quando Ômar Ibn Alkhatab, o segundo Califa, foi com um contingente de seu exército a Jerusalém para concluir um tratado de paz com seus habitantes, ele viu as ruinas de uma construção quase soterrada. Quando inquiriu sobre aquilo, foi-lhe dito que fora um templo judaico, destruído pelos romanos. Ele, então, começou a remover a terra e transportá-la em seu manto para longe dali, gesto este imitado pelo seu exército. Em pouco tempo o templo estava limpo e foi reaberto para o culto dos judeus.
Da atitude de Ômar (R.A) descrita acima, podemos extrair também mais um dos ensinamentos do Islam sobre a liberdade religiosa: O muçulmano não só tem a obrigação de respeitar a crença e culto do outro (obrigação negativa, de inação), mas também deve ajudar os adeptos do Livro (judeus e cristãos) a praticarem suas religiões da melhor forma possível (obrigação positiva, de ação). Eles adoram o Deus Único, e toda adoração dirigida a Ele deve ser facilitada.
No mesmo sentido, no tratado com os habitantes de Jerusalém, Ômar escreveu: “Eis o que o servo de Deus, Ômar Ibn Alkhatab, o Emir dos Crentes, garante ao povo de Jerusalém: Ele lhes garante a paz, e a segurança, a proteção deles e de suas propriedades, de suas igrejas e templos. Suas igrejas não poderão ser ocupadas por outros, nem podem ser demolidas ou reduzidas, e as propriedades das igrejas não poderão ser violadas. Eles não poderão ser oprimidos por causa de sua religião, e nenhum deles poderá ser injuriado”.
É vedada também a injúria aos deuses dos não-muçulmanos, tanto para evitar que estes venham a ofender ao Deus Único, como em respeito aos seus sentimentos. “A generosidade de Deus, Glorificado e Exaltado seja, envolveu o ser humano e Ele até mesmo proibiu que os muçulmanos ofendessem aos deuses dos incrédulos, injuriando-os, de forma a impedir que estes atos levassem estes últimos a injuriar o Deus verdadeiro. Isto é uma generosidade para com o ser humano; o respeito aos sentimentos da criatura sobre as coisas por ele santificadas, é prova de respeito à Sua generosidade.
Se os incrédulos ouvissem da parte dos muçulmanos ofensas aos seus deuses, isso os levaria a ofenderem o Deus destes últimos, e eles (os não-muçulmanos) não querem isso porque acreditam na existência de Deus, Exaltado e Glorificado, mesmo que não sigam a religião do monoteísmo. Além disto, se os muçulmanos ofenderem os deuses dos incrédulos, estes acabarão por ferir os sentimentos dos muçulmanos, da mesma forma que os sentimentos deles foram feridos e isso vai contra o princípio da generosidade existente em cada um dos grupos, acabando por se tornar um fator desagregador, espalhando o ódio nos espíritos.”¹
Esta cautela com o outro, com seus sentimentos e direito à alteridade expressa-se também nos assuntos mais sutis, como por exemplo no ser facultativo aos não-muçulmanos o pagamento do imposto anual (zakat) pago pelos muçulmanos. O zakat consiste na retirada de 2,5% do que o indivíduo acumulou durante um ano para ser destinado à caridade. A imposição do zakat a todos, muçulmanos e não-muçulmanos, seria uma violação à liberdade religiosa destes, compelidos à uma caridade indesejada, prescrita por uma religião que não a sua. Atento a isto, o Islam prescreve que os não-muçulmanos que não desejarem pagar o zakat contribuirão para a manutenção do Estado de outra forma, pagando um imposto alternativo.

            A convocação para o Islam

Há ainda no Alcorão especificação clara sobre a maneira adequada de se convocar à religião, numa nítida expressão de tolerância e respeito: “E não disputeis com os adeptos do Livro, senão da melhor forma, exceto com os iníquos, dentre eles. Dizei-lhes: Cremos no que nos foi revelado, assim como no que foi revelado antes; nosso Deus e vosso são Um e a Ele nos submetemos”. (29:46) E também: “Convoca (os humanos) à senda do teu Senhor com sabedoria e uma bela exortação; dialoga com eles de maneira benevolente, porque teu Senhor é o mais conhecedor de quem se desvia da Sua senda, assim como é o mais conhecedor dos encaminhados”. (16:125)
O combate na história do Islam só se deu na forma de auto-defesa, portanto, esta é a única hipótese autorizada pelo Alcorão: “Ele permitiu o combate aos que lutaram porque foram ultrajados; em verdade, Deus é Poderoso para socorrê-los. São aqueles que foram expulsos injustamente de seus lares só porque disseram: Nosso Senhor é Deus! E se Deus não tivesse refreado os instintos malignos de uns em relação aos outros, teriam sido destruídos mosteiros, igrejas, sinagogas e mesquitas onde o nome de Deus é frequentemente celebrado” (22:39-40)”.
Patente está, do exposto, que o Islam não é uma religião bélica, não se expandiu mediante imposição e não é intolerante àqueles de credo diverso. A enxurrada de propaganda anti-islâmica divulgada diariamente pela mídia não sobrevive no embate direto com os fatos - nós temos a história e, mais importante, temos o Alcorão e a Sunnah, com a transparência que lhes são característicos, a demonstrar a real natureza do Islam.

Esta religião que há mais de 1400 anos afirmou direitos e liberdades de uma forma tão plena, que o ocidente só veio a estabelecer equivalente recentemente (e muitas vezes de maneira ainda débil ou puramente teórica), com o reconhecimento da supremacia do Direito Constitucional. O Alcorão, essa Constituição Universal e Atemporal, posta em prática em sua integralidade na época do Profeta Muhammad (S.A.A.S.), eleva o ser humano, pelo simples fato de ser humano, a uma posição sem igual em dignidade e direitos, sejam eles de liberdade, como o aqui debatido hoje, sejam de qualquer outra natureza.


Veja outras Matérias desta coluna aqui >>> O muçulmano e a sociedade

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